Contos Escolhidos

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Resumo sobre a obra de Machado de Assis.

Para muitos críticos, a obra de Machado de Assis poderia ser dividida em dois momentos bem distintos: as obras da juventude, com forte influência do Romantismo – que incluem os romances Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Iaiá Garcia (1878) e as coletâneas de contos intitulados Contos Fluminenses (1870) e Histórias da Meia-Noite (1873) –, e seu progressivo amadurecimento até chegar ao Realismo de suas obras da maturidade. Entre estas, as mais destacadas e consideradas são Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899). Esta fase inclui também notáveis livros de contos, publicados a partir de Papéis Avulsos (1882).

Entre essas coletâneas de contos poderíamos destacar, além de Papéis Avulsos, Histórias sem Data (1884), Várias Histórias (1896) e Páginas Recolhidas (1899). Machado publicou ainda inúmeros contos em jornais cariocas da época, como o Jornal das Famílias e a Gazeta de Notícias. Muitos foram incluídos posteriormente em livros e integram sua Obra Completa. Alguns permaneceram praticamente inéditos até há pouco tempo, como é o caso do belo “Terpsícore”.

1. O Realismo psicológico

Com seus contos, Machado de Assis passa a integrar a brilhante tradição de contistas da Literatura ocidental – como o russo Anton Tchecov ou o francês Guy de Maupassant – que, a partir do final do século XIX , escreveram narrativas curtas retratando momentos especiais, “fatias de vida” reveladoras do cotidiano e da psique de homens comuns. Machado de Assis fez do conto um veículo perfeito para realizar sua concepção muito particular do que seria o Realismo na Literatura.

Foco narrativo

Nessas narrativas curtas, descobriremos os mesmos temas e os procedimentos literários (ainda mais depurados) que fazem dos romances de Machado de Assis pontos cardeais de nossa Literatura. Em “D. Paula”, por exemplo, podemos encontrar uma chave de interpretação para o clássico Dom Casmurro e uma preocupação central da obra do escritor. Nesse conto sutil, a tia idosa do título tenta resolver a crise conjugal de sua sobrinha, aconselhando-a a evitar que aquele “prólogo de adultério” narrado pela jovem se transforme em “livro”. D. Paula constata então que o rapaz, agente ameaçador do casamento de Venancinha, vem a ser filho de uma intensa (e igualmente adúltera) paixão de sua mocidade. Solucionado o caso da sobrinha com a reconciliação com o marido, fica para D. Paula a incômoda, inquietante e impossível de ser “resolvida” lembrança do passado. Ora, se inicialmente (como em Dom Casmurro) pensamos ser a questão central do conto um dado de enredo (o adultério), logo percebemos o interesse real do escritor: deslocar nossa atenção para o efeito que esse dado provoca na vida interior do personagem.

Em “O Enfermeiro”, o crime cometido pelo narrador contra o velho coronel não é o que o autor do texto quer destacar e sim, o sutil processo de auto-convencimento da inocência agenciado pelo personagem com o respaldo da sociedade do vilarejo.

2. Um conto-síntese: “O Espelho”

Alguns contos de Machado revelam a peculiar inserção do escritor na literatura de sua época que, desgastada pelos exageros românticos, busca na objetividade e no aprofundamento psicológico uma forma de renovação.
Em “O Espelho – Esboço de uma Nova Teoria da Alma Humana”, classificado por alguns críticos como “conto-teoria”, encontramos uma notável síntese da visão de mundo machadiana. Um bom exemplo é a passagem em que a personagem Jacobina expõe a um grupo de cavalheiros sua concepção sobre a natureza da alma:

“Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas… Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro […]”.

Assim, à alma interior corresponderiam todos os nossos sentimentos, emoções e pensamentos mais íntimos e pessoais, a subjetividade enfim; a alma exterior representaria o modo pelo qual interiorizamos a imagem que os outros fazem de nós. Para ilustrar sua concepção, o personagem narra uma história de sua juventude, tratando em essência justamente de um momento em que a alma exterior eclipsou a interior ou, nos termos do conto, “O alferes eliminou o homem”.

O conto “Teoria do Medalhão” desenvolve com muita ironia as mesmas questões levantadas por “O Espelho”. O narrador cede seu espaço à reprodução do diálogo entre um pai e um filho que acabara de atingir a maioridade.

O tom terrivelmente irônico da fala do pai revela, obviamente, a denúncia feita pelo autor por trás do conto em relação a uma sociedade burguesa medíocre e arrogante, que prega o sucesso a qualquer preço, mesmo à custa do empobrecimento da vida interior e das relações humanas.

3. Os impasses de uma época

A partir do conflito básico entre alma exterior e alma interior exposto em “O Espelho”, podemos perceber que boa parte dos contos (e da obra literária) de Machado de Assis reflete o tenso diálogo entre o social e o individual que está por trás da passagem da estética romântica para a estética realista. O escritor, avesso a classificações e conclusões acabadas, preferiu, por meio de suas histórias, refletir criticamente acerca dos impasses da Literatura e do homem de sua época.

Em “O Alienista”, o autor mostra como a ciência (encarnada em Simão Bacamarte) revela-se incapaz de compreender a complexidade tanto da mente humana como do funcionamento da sociedade. O personagem principal busca separar radicalmente loucos e sãos, tomando como sintoma de loucura qualquer expressão da subjetividade mais marcante. Além de criticar a pretensão científica de tudo explicar e classificar, Machado nos mostra como a ciência (aliada ao poder político) pode levar o homem a se perder na variedade inexplicável dos indivíduos.
O conto “A Causa Secreta” revela o universo insuspeitado de sadismo e prazer mórbido que se esconde por trás da aparência de homem bom, prestativo e reconhecido socialmente que é Fortunato. O autor quer penetrar nos desvãos do comportamento humano que a máscara e o papel social não deixam vir à tona.
Já o personagem Garcia é caracterizado pelo narrador de modo semelhante ao alienista Simão Bacamarte:

“Este moço possuía em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo.”

Mas é justamente essa expectativa de análise, próxima aos pressupostos científicos, que será questionada ao final do conto, quando o observador Garcia se torna objeto da observação e análise de seu anterior “objeto de estudo”, ou seja, Fortunato.
Na feroz sátira política ao sistema eleitoral brasileiro que se lê em “A Sereníssima República”, o cônego Vargas tenta, com sucessivos experimentos, dar organização social às aranhas. O conto termina sem que essa pretensão tenha sucesso, uma vez que as facções políticas e individualidades em confronto sempre darão um jeito de burlar os sistemas eleitorais instituídos.

4. Mapeando a subjetividade possível

Se em “O Espelho” a subjetividade não encontra espaço de afirmação e termina sem contornos nítidos, outros contos como “Terpsícore” e “Missa do Galo” mostram como o desejo pode abrir brechas em situações de opressão.

Em “Terpsícore”, o casal pobre que luta para pagar o aluguel atrasado e evitar o despejo encontra no dinheiro ganho inesperadamente na loteria uma forma de realizar os mais legítimos anseios de beleza e prazer que a condição de pobreza sistematicamente lhes nega. A Festa de Estrondo e a dança que
Porfírio e Glória promovem ao final do conto não são mostradas pelo autor como algo alienante e impróprio para pessoas que até há pouco não tinham como pagar o aluguel, mas como única forma de abrir “um hiato esplêndido na velha noite do trabalho sem tréguas”.
“Missa do Galo” nos mostra o encontro e o tímido diálogo entre um jovem e uma senhora casada e traída pelo marido numa noite de Natal. Praticamente nada acontece objetivamente entre os dois, mas Machado de Assis parece nos querer dizer que, onde nada acontece, tudo pode estar acontecendo subjetivamente e, para que o percebamos, é preciso apurar os ouvidos e ler nas entrelinhas as marcas do desejo não-explícito.

5. Os mecanismos da opressão

Em contos como “O Caso da Vara” e “Pai contra Mãe”, podemos perceber a intenção do autor em analisar as cruéis relações de dominação entre seres iguais, todos subjugados por um sistema político e social marcado pelo autoritarismo, mas que não hesitam em reproduzir e legitimar a opressão de que são vítimas.

6. Os impasses da criação artística

Também a própria criação artística é objeto da reflexão de Machado, que mostra o quanto ela pode ser igualmente marcada pelo embate entre os desejos individuais e as pressões da sociedade. O personagem central de “Um Homem Célebre”, o compositor Pestana, rejeita o sucesso fácil das polcas que compõe e que se tornam rapidamente obras populares nos salões e festas. Para ele, a grande criação artística estaria no âmbito da música clássica que, em vão, tenta compor. No entanto, o narrador descreve o momento da composição de uma das polcas como o mais pleno e espontâneo instante de criação, uma vez que elas brotam magicamente dos dedos do compositor:

“Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.”

Assim, o equívoco do personagem está em buscar por toda a vida algo fora de suas possibilidades e rejeitar o que faz melhor. O narrador resume o drama de Pestana quando diz:

“[…] expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.”

7. A complexidade do real

Talvez o que se possa guardar de mais significativo da leitura dos contos de Machado de Assis é a impossibilidade de respostas prontas e acabadas diante do mistério essencial que habita o ser humano e que responde pela motivação de muitos de seus atos. Assim, os personagens de “A Cartomante”, “Singular Ocorrência” ou “Missa do Galo” querem saber, ter conhecimento pleno a respeito de alguma coisa e, para isso, recorrem ao além, ao levantamento de hipóteses ou ao próprio ato de narrar o que foi vivido. Mas, ao final, não encontrarão senão a morte, o desconhecimento das motivações humanas ou a ignorância. Para o leitor, no entanto, fica a possibilidade de conviver com o aberto, com o não-resolvido, com o fato de não se poder conhecer a totalidade de algum evento ou de alguém. Essa postura inconclusiva que o leitor deve guardar para si parece ser, de resto, propósito recorrente da obra de Machado de Assis, desde a hilária impossibilidade de definir a loucura que ressalta das páginas de “O Alienista” até a simplicidade quase ingênua do narrador de “Missa do Galo”, que inicia o conto por afirmar:

“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta.”

Em uma época de teorias científicas e sociais que pretendem dar conta do real, como é o momento do Realismo na Literatura ocidental, a voz dissonante do genial Machado de Assis ousa abdicar das certezas e instaurar o universo do desconhecido que preside a alma humana.

 

 

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